sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Memórias da Grande Guerra

Jaime Cortesão participou na 1.ª Guerra Mundial, como médico do Corpo Expedicionário Português. Trabalhava no Hospital das Doidas, em St. Venaint, e registou a sua experiência da guerra no livro "Memórias da Grande Guerra" (1916-1919)




«Depois ao vir da manhã atacaram. Atacaram em massa, às ondas, sempre em ondas, numa catadupa de homem. Só muito perto os vimos surgir do nevoeiro espesso da manhã. De nós os que ficámos, raros intactos, resistimos até à última. Houve cargas de baioneta. Uma fúria! Tu sabes: a coisa que mais detesto é os falsos heróis. Mas ninguém, ninguém faria mais. E tu conheces como estávamos cansados... A seguir abateram ou manietaram tudo à força de número. Vi junto de mim, ali ao pé, oficiais alemães, pistola em punho, atirando sobre os poucos que tentavam salvar-se. Eu próprio estive envolvido. Atirei sobre um. Resisti. Furtei-me. O nevoeiro, o fumo da pólvora; a poeira levantada no ar eram tão densos, que pude escapar com duas ordenanças Todo o meu terror era cair prisioneiro: Antes morrer, morrer mil vezes! Lá venho. Mas os caminhos tinham sido apagados pelos fundões dos rebentamentos e andámos de cova em cova, aos rebolões, errando. Logo, alguns passos dados, caio e zás! Fico enterrado até os ombros na lama dum dreno. Já me dispunha a morrer, a ficar ali, sem forças para mais. E os meus homens, como eles são dedicados! Teimaram, que não arredavam pé e, à força de pulso, arrancaram-me ao charco. Lá vim, de trambolhão, caindo aqui, além me erguendo, no meio da tormenta. De começo, ao rebentar das granadas, ainda me lançava a terra; depois, perdido, cortando os campos ao acaso, ferido, exausto, cambaleante, nem as ouvia, nem me importavam, insensível ao perigo.»


Soldados portugueses nas trincheiras da Flandres

João Nabais